“Quick Fixes” e a Reforma do IVA
Conforme se sabe, através das Diretivas do IVA, a União Europeia procedeu à adoção de um regime comum de IVA a todos os seus estados-membros (atualmente 28).
Na UE as seguintes transações estão sujeitas a IVA:
- Entrega de mercadorias por um sujeito passivo no território de um EM da UE;
- Importação de mercadorias de fora da UE;
- Aquisições intracomunitárias de mercadorias;
- Prestações de serviços sempre que o destinatário esteja estabelecido na UE.
O atual sistema de IVA começou a ser introduzido no espaço comunitário em 1 de janeiro de 1993 e pretendia ser temporário e transitório. À data, adotou-se um método de tributação no destino, com o intuito de, com tempo, serem construídas as bases que permitiriam a desejada aplicação de um método de tributação no país de origem.
A implementação do sistema transitório obrigou a generalidade dos operadores económicos a familiarizarem-se com um complexo conjunto de regras e a investirem nos seus sistemas de controlo para dar cumprimento ao normativo vigente. Este facto, associado ao elevado número de ajustes necessários à transição para um modelo de tributação na origem, fez com que o que era transitório fosse sendo definitivo.
Reformar o Sistema de IVA
As fraudes de IVA, contudo, proliferaram de tal forma com a vigência do atual regime, que o legislador europeu entendeu, apesar dos elevados custos, redesenhar o sistema.
Elucidativos são os dados do relatório GAP de IVA, da Comissão Europeia, de Setembro de 2019, segundo o qual a diferença de IVA (o que devia ter sido arrecadado e o que realmente foi entregue aos cofres dos EM) em 2017 ascendia a 137 mil milhões de euros. A fraude e a evasão fiscal surgem como uma das principais causas para a diferença reportada.
Neste panorama, concluiu a Comissão Europeia, pela necessidade da criação de um espaço único de IVA na UE, assente, designadamente, na simplificação do sistema, com redução dos custos de complience para os operadores económicos e no combate à fraude fiscal.
Com este fito a Comissão elaborou um conjunto de importantes propostas, das quais se destacam as denominadas quick fixes (com vigência prevista a partir de 01 de Janeiro de 2020).
De facto, em 07 de Dezembro de 2018 foram publicados três diplomas que introduziram um conjunto de 4 medidas que visam melhorar o funcionamento do actual sistema de IVA e preparar a introdução do sistema definitivo (sendo por isso comumente designadas por quick fixes).
As “Quick Fixes” introduzidas
São quatro as “correções rápidas” que entraram em vigor no início de 2020:
- A (i) harmonização das regras relativas a transações em cadeia e a (ii) harmonização das regras aplicáveis à venda de bens à consignação, implementadas pela Diretiva (UE) 2018/1910 do Conselho, através da adição dos artigos 36.º-A e 17.º-A à Diretiva 2006/112/CE (Diretiva do IVA).
- A (iii) harmonização das regras de documentação dos movimentos transfronteiriços de mercadorias, introduzidas pela Diretiva citada supra, através da modificação do n.º 1 e da introdução do n.º 1-A ao artigo 138.º da Diretiva IVA e pelo Regulamento de Execução (UE) 2018/1912 do Conselho, de 4 de dezembro de 2018, que adita os artigos 45.º-A e 54.º-A ao Regulamento de Execução (UE) 2011/282;
- A (iv) implementação de um mecanismo obrigatório de conferência da validade de número de contribuinte em transações intracomunitárias de bens introduzido pelo Regulamento (UE) 2018/1909 do Conselho, de 4 de dezembro de 2018, que altera o artigo º do Regulamento (UE) n.º 2010/904.
Embora todos os diplomas referidos tenham definido o início da sua vigência para 01 de janeiro de 2020, algumas destas medidas não são ainda aplicáveis em Portugal, por falta de ato de transposição que já deveria ter ocorrido (a transposição estará, provavelmente, para breve, tendo sido discutida em Conselho de Ministros no passado mês de dezembro).
(i) Harmonização das regras relativas a transações em cadeia
De acordo com o novo artigo 36.º-A da Diretiva do IVA, nas transações em cadeia (transações com, pelo menos, dois fornecedores, mas apenas com um movimento de bens de um EM para outro) a isenção de IVA deve aplicar-se à transmissão realizada entre o primeiro fornecedor e o intermediário.
Esta regra conhece uma só exceção: se o operador intermediário comunicar ao seu fornecedor o número de identificação IVA que lhe foi emitido pelo Estado-Membro a partir do qual os bens são expedidos ou transportados, a isenção aplicar-se-á à transmissão realizada pelo intermediário.
(ii) Harmonização das regras aplicáveis à venda de bens à consignação
Na venda à consignação os bens são mantidos pelo fornecedor no armazém do cliente ou de terceiro, para que o cliente retire mercadorias para venda sempre que necessário.
Até à implementação das quick fixes, o fornecedor que procedesse a uma venda à consignação intracomunitária, efetuava uma transmissão intracomunitária seguida de uma aquisição intracomunitária (presumida), o que implicava o registo no país de destino, onde iria auto-liquidar o IVA (sem prejuízo do direito à dedução). Posteriormente o sujeito passivo transmitiria os bens ao adquirente, liquidando o IVA como em qualquer outra operação interna do EM em causa.
De acordo com o novo artigo 17.º-A da Diretiva do IVA, “…não pode ser assimilada a entrega de bens efetuada a título oneroso a transferência por um sujeito passivo de um bem da sua empresa com destino a outro Estado-Membro ao abrigo do regime das vendas à consignação…”, desde que:
- Os bens sejam expedidos ou transportados por um sujeito passivo (ou por terceiro, mas por conta deste) para outro EM, para, posteriormente e nesse mesmo EM, serem entregues a outro sujeito passivo habilitado a adquirir a sua propriedade;
- A transmissão seja efetuada nos termos de um acordo existente entre os sujeitos passivos envolvidos na operação;
- O sujeito passivo que procede à expedição ou ao transporte dos bens não tenha a sede da sua atividade económica nem disponha de estabelecimento estável no EM de destino;
- O sujeito passivo destinatário esteja registado para efeitos do IVA no EM para o qual os bens são expedidos ou transportados;
- A identidade e o número de identificação IVA atribuído pelo EM de destino ao adquirente seja conhecida pelo sujeito passivo quando se inicia a expedição ou o transporte;
- O sujeito passivo que procede à expedição ou ao transporte dos bens registe a transferência dos bens no registo previsto no artigo 243º, nº 3 (norma igualmente introduzida pela Diretiva em apreço) e indique a identidade e o número de identificação IVA do sujeito passivo adquirente no mapa recapitulativo previsto no artigo 262º, nº 2.
- As mercadorias não procedam à consignação por mais de 12 meses.
Com estas alterações, cumpridos os requisitos enunciados, a venda à consignação deixa de ser considerada um fornecimento intracomunitário e uma aquisição presumida e o fornecedor não tem mais de proceder ao registo para efeitos de IVA no EM de destino.
(iii) Harmonização das regras de documentação dos movimentos transfronteiriços de mercadorias
De acordo com a nova redação do no número 1 do artigo 138.º da Diretiva IVA, a isenção nas transmissões intracomunitárias de bens depende da verificação das seguintes condições:
- Os bens serem fornecidos a outro sujeito passivo ou a pessoa coletiva que não seja sujeito passivo agindo nessa qualidade num EM deferente do Estado de partida dos bens;
- O sujeito passivo ou a pessoa coletiva a quem a entrega é efetuada esteja registado para efeitos do IVA num EM diferente do Estado de partida da expedição ou do transporte dos bens e tenha comunicado esse número de identificação ao fornecedor.
Ora, se até à data a prova do cumprimento dos requisitos necessários à isenção podia ser produzida por qualquer um dos meios legalmente admissíveis, com os novos artigos 45.º-A e 54.º-A do Regulamento de Execução (UE) 2011/282, o legislador veio harmonizar os meios de prova considerados idóneos.
Para esse fim, o regulamento em apreço agrupou os meios de prova admissíveis em duas listas, a saber:
- A lista A, relativa a documentos relacionados com o transporte ou a expedição dos bens, tais como uma declaração de expedição CMR assinada, um conhecimento de embarque, uma fatura do frete aéreo ou uma fatura emitida pelo transportador dos bens;
- A lista B, relativa a outros documentos, tais como i) uma apólice de seguro relativa ao transporte ou à expedição dos bens ou documentos bancários comprovativos do pagamento do transporte ou da expedição dos bens; ii) documentos oficiais emitidos por uma entidade pública, por exemplo um notário, que confirmem a chegada dos bens ao Estado-Membro de destino; iii) um recibo emitido por um depositário no Estado-Membro de destino, que confirme a armazenagem dos bens nesse Estado-Membro.
Ora, de acordo com o novo regime, presume-se que os bens foram expedidos ou transportados a partir de um Estado-Membro para outro quando o vendedor indique que os bens foram por ele transportados ou expedidos (ou por terceiros, por sua conta) e detenha dois documentos previstos na Lista A ou um documento previsto na Lista A e outro previsto na Lista B. A administração pode, contudo, ilidir a presunção através de prova em contrário.
Presume-se igualmente que os bens foram expedidos ou transportados a partir de um Estado-Membro para outro quando:
- O vendedor obtenha do adquirente uma declaração escrita que indique que os bens foram transportados ou expedidos pelo adquirente (ou por terceiros, por sua conta) e que mencione o Estado-Membro de destino, o nome e endereço do adquirente, a quantidade e natureza dos bens, a data e o lugar de chegada dos bens; e
- Existam dois elementos de prova não contraditórios da Lista A ou de qualquer um dos elementos a que se refere tal Lista A, em conjunto com qualquer dos elementos de prova não contraditórios a que se refere a Lista B, que confirmem o transporte ou a expedição.
Esta presunção não é, ao contrário da anterior, ilidível pelas autoridades fiscais.
Importa notar que, em qualquer dos casos, os documentos probatórios a reunir devem ser emitidos por duas partes independentes uma da outra.
Ao exposto acresce que, de acordo com o novo n.º 1-A do artigo 138.º da Diretiva IVA, a isenção não se aplica caso o fornecedor não tenha cumprido a obrigação relativa à apresentação de mapa recapitulativo ou se o mapa apresentado não contiver as informações completas e corretas, relativa à entrega em causa.
(iv) Implementação de um mecanismo obrigatório de conferência da validade de número de contribuinte em transações intracomunitárias de bens
Finalmente, o Regulamento (UE) 2018/1909 do Conselho veio alterar o artigo 21.º, n.º 2 do Regulamento (UE) nº 2010/904. De acordo com a nova redação, a inclusão do número de contribuinte do adquirente no VIES é agora um requisito material da aplicação de isenção de IVA nas transações intracomunitárias de bens e não apenas um requisito formal. O legislador considera que os Estados-Membros devem garantir que, quando o fornecedor não cumpra as obrigações de indicação na lista VIES, a isenção não se aplique.
Nota Final
Do conjunto de medidas propostas pela Comissão importa também referir (ainda que brevemente, por ter aplicação prevista apenas para o ano de 2021) o denominado pacote e-commerce, que prevê a transformação da MOSS (Mini One Stop Shop) em OSS (One Stop Shop).
A MOSS é um mecanismo que permite que aos sujeitos passivos que prestam serviços de telecomunicações, de radiodifusão ou televisão ou serviços por via eletrónica a consumidores não terem de proceder a um registo fiscal em cada Estado-Membro em que tenham clientes. Trata-se de um regime especial de IVA que consiste na cobrança da taxa de imposto praticada em cada país de venda ou de prestação do serviço.
A OSS alargará o âmbito de aplicação da MOSS à generalidade dos serviços prestados a consumidores, vendas à distância e importações de mercadorias para venda a consumidor final, sendo, por isso, um importante passo para a constituição de um espaço único de IVA na UE, que se espera que venha a ser implementado em 2022.